contador

Páginas

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Amigos! Eis mais um trechinho do livro autobiográfico, lançado em 2010. A Menina do Bairro Fria!

NO COMÉRCIO NÃO DÁ! - O ESPINHO SPIRELO

            Q uando saiu da Limpadora, aos 17 anos, Luzia foi trabalhar no comércio, por pouco tempo.
            -Abra logo esta carta, mulher! O que aquela fora do ar escreveu aí?  - O senhor Spirelo, jovem ainda em seus 30 anos, era o proprietário de uma casa de frios, patrão de Luzia por apenas 40 dias. Tempo demais para deixar-lhe traumas que demoraram a serem superados. Ele, um homem ríspido, autoritário e extremamente grosseiro e reacionário, pegou a carta das mãos da esposa, uma pessoa delicada e destoante com a figura prepotente do marido. O semblante dele foi se alterando. O rosto comumente avermelhado apimentou-se como a malagueta madura. Seus olhos claros crisparam-se, disparando centelhas de fogo. Suas mãos tremiam de raiva descontrolada.
            O que estaria fincado naquele simples papel para proporcionar tamanha reação? Era um afrontamento de Luzia. Aquele homem de porte altivo, bem feito de corpo, bumbum torneado, peitos e ombros fortes, de sorriso amarelo mesmo com os dentes bem feitos, de intelecto razoável e orgulhoso, quase chorou ao ler “o senhor necessita fazer um curso para capacitação humana, de modo que possa aprender a lidar com as pessoas, a se relacionar educadamente com os funcionários e com todos que o cercam. Seu lucro vai aumentar e a sua qualidade de vida também”.
            -Aquela magrela petulante?!! Mas que audácia!!!! Quem ela pensa que é??! Vai ver só com quantos paus se faz uma canoa! - A esposa delicadamente correu buscar um copo d’água para acalmá-lo. – Sua voz enrouquecia na medida em que lia “não é justo e tampouco inteligente tratar os meninos de 13 anos como um Zé ninguém, obrigando-os a subirem as escadas com aquelas caixas pesadas nas costas. Já percebeu que o Claytom está andando meio curvado? E por que humilhar a eles e a nós balconistas, falando-nos com estupidez na frente dos clientes e gritando com frequência  “Burraaaaa!!!”. E os nossos salários que não chegam nem ao mínimo e cada uma recebe um valor diferenciado  pelo mesmo trabalho!?!  Põe amor em seu coração e será mais feliz. ....”
            Naquela tarde quando Luzia apareceu para fazer o acerto de contas, já que pedira demissão, encontrou-o em idêntica situação descrita acima. Impetuosamente voou em direção à ela. A esposa interpôs-se entre ambos, impedindo o marido de agredir a ex-funcionária. Os cabelos dele, ruivos e lisos, quase se encresparam. Luzia não se moveu. Temia algumas coisas na vida, como espíritos perdidos e gente falsa, mas nestas situações não havia temor em seus olhos, pelo contrário, sua coragem e ousadia ampliavam-se inexplicavelmente. Aferiu o pagamento recebido. Mudez. Saiu.
            No caminho de volta a sua casa, morava a três quarteirões dali, numa casa alugada no centro da cidade, absorta, foi refletindo. Após receber seu salário quis procurar um advogado e iniciar um processo reivindicando seus direitos. O patrão não a registrara, fato comum a vários funcionários, e mais outras irregularidades. Sim, havia motivos para um processo judicial, pensou. Comentou a sua intenção com a mãe, conversaram e decidiram esquecer. –Quer dizer que o homem vai continuar aprontando com o próximo??!! Quem serão as próximas vítimas? – E completou, já mais conformada : - Tudo bem, aqui se faz aqui se paga! Quem com ferro fere, com ferro será ferido! Quem muito quer nada tem! “Aquele cheiro de frios, salame, azeite, nozes, ficou instalado em minhas narinas. Dá azia nas lembranças.” “Quer presunto ou apresuntado, madame?!  A senhora quer esta marca de mussarela, aquela ou aquel’outra?!” –Luzia imitava a própria voz e a dos clientes. “-Há tantas opções de mussarelas, e ainda por cima sem rótulo, como eu poderia identificar uma a uma? ...pra mim são todas iguais!!”
            Passara por outras humilhações quando trabalhou numa lojinha de bijuterias, em contrato de fim de ano. O dono obrigava as funcionárias a limparem o imundo banheiro sem material decente e quando algum moleque adentrava a loja sorrateiramente e roubava elásticos de mínimos centavos, ele se punha a praguejar imperativo:
            -Cata ele! Luzia, Flavia! Corram suas lerdezas e não deixem ele escapar!!Falava em sotaque - Meu dinheiro é que vai pro lixo! Anda, anda!!! –E lá se iam as meninas a correr pela rua atrás do fujão. Luzia não aceitava estas e outras atitudes rudes que a expunha frente aos clientes. Realizaram confraternização com “amigo secreto” no final do ano. “Que amigos uma ova!!”. Deu graças a Deus quando findaram as vendas de natal e ela não foi convidada a continuar.
            Foi nesta época que ela opta em vender as carteiras-mochilas –três em um - como ambulante. Autônoma se sentiria mais livre sem ser explorada, ganhava bem com as vendas. Tão bem que conseguira pagar o cursinho pré-vestibular e ainda guardar um pouco para os primeiros tempos de faculdade. Recebeu incentivo do namorado possessivo que atuava nesse ramo. Era a única coisa que ela lhe tinha gratidão, guardou poucas lembranças do namoro que ela terminou abruptamente.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

VISITA DEFINITIVA

Princesa dorme agora, sonhando com uma nova companhia que chegará em breve. Esta companhia sou Eu! Afinal são 11 anos em que ela monopoliza o território do quintal e quase da casa toda. Espaços estes conquistados pouco a pouco, no decorrer dos anos, na casa da família Silva.
Cheguei num domingo de muito sol, tímida e medrosa. Os dois seres estranhos que me adotaram parecem gostar de mim, afinal me escolheram entre centenas, cuidados pelo pessoal de uma generosa Ong. Deram-me um nome curto: Bele! Gostei! Encontrei a cadelinha deles, a Princesa, já na entrada, no portão da Ong. Levaram-na junto para que nos conhecêssemos fora do território dela, acaso rolasse algum desentendimento ou ciúmes de sua parte.
A mulher magrela passava as tardes junto a nós, no espaçoso quintal, fazendo brincadeiras para nos aproximar. Jogava um brinquedinho para a veterana poodle e uma bolinha para mim, primeiro na direção oposta depois na mesma direção. Corríamos, enquanto a minha nova amiguinha pegava o bibelô e o segurava nos dentes, eu pegava a bolinha e levava para a mulher. Na hora de apanhar a bolinha minhas pernas pareciam desengonçadas e eu demorava a pegá-la. Ai senhor meu Deus!Ela fica correndo atrás daquela garrafa pet verde, arrasta pra lá e pra cá, joga pra cima, pressiona-a no muro e a levanta com o focinho. Aí quando aparece a mulher para chutar a garrafa com ela, vixe, a barulheira aumenta, pelo amor!! Não vejo graça nisto.
Acabo de passar por uma cirurgia. É para não ter mais filhos, apesar da minha pouca idade. Deixei minha cria na Ong. Os três. Desmamaram e o pessoal de lá já tomou providências pra que não pegasse mais filhos. Judia muito da gente e não tem como criá-los com dignidade.
Agora, no meu novo lar, faço de tudo para conquistar o carinho do casal e o respeito da podoodlelzinha. Nos primeiros dias, minha perna tremia só em me aproximar dela ou de seus dois cochinhos, coloridos e asseados. Eu pegava dois grãos de ração e corria me esconder na casinha, a comê-los. Temia que outros cachorros, invisíveis, devorassem tudo, a me deixar na mão, quer dizer, na pata. Depois de algumas rosnadas, mostrando aqueles dentes e uma cara feia, Princesa passou a se aproximar de mim no intuito de me cheirar e me conhecer melhor. Cedi e também a cheirei.
Ela gira ao próprio rabo, mas não o alcança. Pobre cachorra! É a centésima vez que tenta, sem êxito.

 

Disputei a casinha de madeira com a poodle. Troquei várias vezes de casa. Durante o dia eu ficava na nova, comprada para mim, mais espaçosa e fresca, de material reciclável; à noite preferia a de madeira, mais aconchegante. E assim, trocamos de casa, eu e ela. Nada mal para um novo membro da família!
Eu quase não latia, mas em poucos dias minha voz foi se soltando e já podia acompanhar a Princesa nos latidos. Cheguei até a uivar, num certo dia. Fiquei maravilhada com a minha capacidade e coragem. Logo, o homem e a mulher, ela chefe da matilha, me ensinaram a não latir o tempo todo, inutilmente. Tinha que maneirar, afinal, os vizinhos poderiam fazer uma reclamação da minha recente presença naquela rua. E eu não suportaria voltar a ser vira-lata, sem lar.
Ensinaram-me a “dar a patinha” como já fazia, com glamour, a Princesa. Chegou a hora do banho. Não aprovei muito, mas relaxei. As mãos humanas deslizavam pela minha cútis. Uma sensação muito boa de carinho e afeto. Afinal, a outra tomava seu banho semanal sem reclamar e ainda tinha que aceitar a escovação de seus pelos crespos que teimavam em se enrolar, principalmente nas orelhas. Ui! Que dor! Sorte que os meus pelos são lisos. Quer saber a cor? Caramelo! Meus olhos amendoados passaram a olhar compenetradamente nos olhos de mel da humana. Eu os fixava e sentia uma vibração boa pulsar dentro dela. Ela desviava a visão para, em seguida, fixar nos meus. Assim ficávamos por minutos, sem falar ou latir. Sensacional.
A mulher cuida bem da gente. Já me levou pra receber a segunda dose da vacina. Foi só uma picadinha...Ui! Sei que é pro meu bem, pelo menos foi isso o que ela me explicou, antes da pontada! Em casa, ela escova nossos dentes, pastinha até que saborosa!
Minha companheirinha é bem sentimental, mas acho que eu também sou. Quando os Silva se preparam para sair, ela vira as costas pra porta da cozinha, fica séria olhando para a parede do muro; pode oferecer ossinho ou chamá-la que, não adianta, ela se melindra; não olha pra trás. Nem se mexe. Se fosse uma humana, diria que ela é um cocô!
Já no início, comecei a fazer coco no local mais adequado: alguns jornais estendidos no canto do quintal, atrás de alguns grandes e belos vasos de flores perfumadas. Isso, de imediato, agradou à magrela e ao marido dela, este que, com o tempo foi me conquistando e eu a ele; porém, não de cara. Permitia que desse umas lambidas rápidas em suas mãos ou pés. Ou seria porque não dava tempo dele escapar de minha ágil língua?! Sei lá. Subia no colo da mulher. Só sei que tudo caminhava bem – até a Princesa passou a me convidar para brincar de pega-pega e esconde-esconde, sendo que no primeiro convite que lhe fiz, ela recusara, agora subia em minhas costas e me provocava ou convocava a correr; eu a enganava, quebrando a corrida e meia volta, retornava correndo, às vezes em roda -. Porém, um costume meu, uma mania eu diria, deixou meus novos amigos de queixos e focinho caídos. Todo e qualquer acolchoado, na ausência deste, qualquer tapete ou paninho, eu puxava ao fundo do quintal, deixando a poodle com a casinha no chão duro de madeira.
Fiz isso depois de uma semana nesta nova casa. Juntava os brinquedinhos aos panos. Mordia os acolchoados revestidos de borracha que forravam as duas casinhas, até que a magrela, simpática como ela só, docilmente recolheu-os deixando só dois panos finos. Minha companheirinha, da qual brigamos uma só vez, preferiu se omitir nestas ocasiões, porém o homem e a mulher procuraram várias explicações, nenhuma plausível. “É uma franciscana, querida, só pode ser!”, dizia o homem, olhando-me torto. Sabia eu que, não estando nós no inverno, pra que colchão?
  
PALHAÇO

Palhaço ou clown é a mesma coisa. É um estado sublime do ser .
         É buscar dentro de si as imperfeições, contradições, medos, dúvidas, crenças; o ridículo, as falhas e deixar virem à tona, deixar fluir, expor para todos quem você é e o que o outro também pode ou deve ser. Não só do indivíduo como da humanidade, as fraquezas, misturadas com o prazer, os desejos ocultos.
         É revelar-se, desafiar-se, enfrentar-se e correr riscos.
         É provocar o riso com o hilário, com o inesperado, com a surpresa, com a coragem.
         É despir-se e mostrar o que não deu certo no outro ou em si próprio .
         É focalizar o olhar e os gestos
         É criar, recriar, adaptar, improvisar, ensaiar, treinar...

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

CATIVOS DO PERIGO

Dorinha, cadela cativa
Cativa na solidão
Sentindo as dores do parto
Buscou local na contramão

Num bueiro...as contrações
Força! Força...Auauauauuuuuu...
 gemidos misturados às emoções
Vem as crias ... devagarinho

2! Ôpa, mais um
3! Ôps, mais dois
5 de olhos fechadinhos
De olhos abertos, nenhum!

Lambeu-os! Placenta e todo o mais.
Um fétido odor provinha do esgoto.
A mãe, lamentando o destino dos filhotes
sem o macho, ó Deus nos acode!

Dorinha faminta
Chuc, chuc...seu leite cedia
Ao ver os filhotes
 por dentro sorria

Vem uma chuva, engrossa
De novo na contramão
Procuram outro abrigo
E os olhinhos que já veem não querem ver o perigo!

Mesmo vira-lata, sabe Dorinha de seu valor
Amor, carinho, companheirismo!
Já viu outros brincando
com humanos sem racismo

Sonha um dia
Humano sensível
Estendendo-lhe a mão
Será utopia?

Cativa aquele que dorme no chão
No canto do templo
Ela estende-lhe a pata
Slep!! E viva a adoção!