FOGÃO COMPANHEIRO, ISTO É O QUE ELE É!
Eram galhos secos de árvores e arbustos,
separados especificamente para uso doméstico, combustível para o velho fogão de
lenha, que reinava único e exclusivo na cozinha. Em torno dele a família
costumava se reunir, em geral no frio da madrugada e no vento fresco do
anoitecer. Ficavam a admirar o vermelho rubro das brasas estralando, ajeitando
a lenha que se afastava do bocal da panela, substituindo os galhos tortos que
se consumiam. Ou acrescentando gravetos
para impulsionar o fogo. Na quina da parede com o teto da cozinha, algumas
abelhas dividiam o calor do fogão com as pessoas; uma “casinha” comprida e
estreita, de barro, feita por elas aos poucos, acomodava as moradoras,
discretamente. As pessoas aqueciam as mãos no calor das brasas e tocava no
rosto gelado. As crianças percebiam-se protegidas e amadas sentando-se na
lateral do fogão a observar o ir e o vir da mãe, apressadamente, nos afazeres
culinários e domésticos. Não se sentiam solitárias, sempre tinha alguém da
família por perto, ou alguns animais. Os trabalhos socializados e essa
proximidade favoreciam o respeito e a valorização dos progenitores e dos irmãos
mais velhos, pois viam o serviço, participavam do funcionamento da casa.
Em tempos de longo inverno, de manhã, Lúcia,
uma garotinha de 5 anos, enrolava-se num cobertor, sentada ou agachada num
canto do fogão, próxima à parede já aquecida, esquentava-se e mantinha somente
o nariz de fora e assim ficava por horas na mesma posição, até o sol erguer-se.
-Não dá trabaio, esta menina. -Dizia Seu
Reinaldo, o pai, enquanto a mãe ajudava no café. Às vezes a aconchegava em seu
colo e até cantarolava, e a menina acabava dormindo novamente, nesse aconchego,
pois acordava na aurora.
Talvez o fogão
realmente representasse um aliado, amigo para todas as horas. Figura
arquetípica de pai/mãe. Aquele que transforma o alimento através das mãos da
mãe. Alimento que fora plantado e cultivado por todos da família. Com cheiro
peculiar, cor e sabor do seu cotidiano. Quantas batatas doces foram assadas em
suas brasas rutilantes. Milho verde!
Todo dia a senhora Deolinda, com uma das
filhas, vinha mais cedo da roça para preparar o almoço, punha nas marmitas de
alumínio para os que ficaram trabalhando na roça. Acrescentava uma garrafinha
de café com leite. Ajeitava tudo em uma ou duas cestas, retangulares, de palha.
Garfo e colher também enrolados num guardanapo excessivamente alvo. -Tá
quentano a comida, mãe? Ué, a mãe tá
chorano.- Pensava Lúcia. Não! Era só
a cebola que a mãe cortava para a salada.
-Ô mãe! Dexa eu comê uma
marmita tamém? -Indaga ela, com
vontade de almoçar de forma semelhante aos irmãos, na roça: sentia aquele
cheiro saboroso que acompanhava o vapor da marmita quando a destampavam,
provocando saliva em sua boca. E já “grudava” os olhos “gordos” na garrafinha
de vidro transparente e com tampa plástica colorida, cujo cristalino do
recipiente era um atrativo lúdico para ela. Então, quando estava capinando,
semeando ou cortando cana, Lúcia recebia também a sua marmita, ainda quentinha,
como os outros. Vez ou outra, um vidro com pimenta curtida no vinagre, com sal
e cebola picada, preparada artesanalmente, aguçava o apetite. Espremiam-se
gotas de limão ou de laranja na comida.
A parada para o almoço era concomitante ao
ápice da fome, por volta das 9 horas, verificadas pela posição do sol. Saíam de casa com o terceiro canto do galo,
após o café das 5 horas. A labuta era suada, daí chegar cedo a fome do almoço.
A batatinha cortada em grossas rodelas,
refogada na panela de ferro, temperada com cebola ou alho era um dos alimentos
preferidos e de longe se sentia o aroma característico. O arroz, o feijão
carioquinha, mulato, rosinha ou jalo – vulgo “amarelão”-, a omelete feita com
um ovo só e mais cheiro verde, farinha de trigo e fermento, os legumes e
verduras com um cheiro próprio de recém colhido, um cardápio caboclo. A chaminé
quebrando sigilo indicava a qualquer raro visitante que o fogão estava em
atividade. Por causa da fumaça constante liberada, a parede da cozinha
permanecia sempre escura, coisa que incomodava as vistas dos moradores.
Na hora da janta: -Ô, Rita!Cata mai paia de mio no
paiol pra acendê o fogo, que essas tão acabando. -Pede Dona Deolinda. –E sabugo
também, pra ajudá a queimá essa lenha
ruim que sobrou. Ponha o resto no jacá
pra mode dos ninho das galinha. Seu Reynaldo ia empurrando as brasas mais
para o fundo, com um ferrinho. Acesas aos poucos, com auxílio de um fole, as
nuances alteravam-se conforme a brisa soprava, com o matiz ora vermelho claro,
ora mais escuro.
-Bem que a mãe pudia fazê aquele meladinho de açúcar, duro e grudento.
-Não vamo
fazê doce nenhum, agora. Vamo
parando com esse pampero, que tem
trabaio pra fazê. -Falou a mãe, com
seriedade. -E lave essas verdura com
cuidado, veja se não tem bichinho grudado nas
foia. Regace as manga da brusa pra mode de não moiá.
-Não coma na panela,
que chove no seu casamento! –Fala Lucilene, a filha mais velha, corrigindo Lúcia,
que se esbaldava em raspá-la.
-Eu não vou casá mesmo, resmungou Lúcia.
–E não coma na concha.
As meninas tinham um valor semelhante ao
guardião e à guardiã do fogo na Idade da Pedra Lascada. Invariavelmente uma
delas bafejava o fogo para aumentar as chamas e impedir que se apagasse.
Quando os tijolos do fogão vermelho iam-se
amornando, as meninas limpavam o excesso de cinzas que se acumulavam nas bocas
do mesmo, com uma pequena vassoura de cabo curto e um pano úmido. As unhas
ficavam escuras. A cinza era reaproveitada para os canteiros na horta. Algumas
vezes, era necessário respingar água para acalmar as brasas, em outras vezes,
os pingos de água caíam sem querer e atrapalhava. Lucilene tampou a panela do
buraco de trás e colocou-a na chapa junto à chaleira. Eram três os espaços para
o cozimento. Puxou um “tampão” redondo, de ferro fino, e vedou um dos buracos
para impedir que a fumaça se espalhasse. Ergueu ela a pesada panela de ferro, o
fundo sempre impregnado de carvão, procedeu à limpeza de sempre.
Outro dia:
-Dexe
um pouco pra mim. Me dá um bocado, um tiquinho só... Ô mãe, só elas querem raspá a bacia do bolo.- Reclama Lúcia
sobre o resto da massa que sobrara.
-É nada! Tem um pitéco procê aqui- Diz Lucilene
lambendo a massa do bolo, nos dedos. – Mai
venha logo, que tá acabando, sua descabelada!Completa em sussurro.
Caiu um cisco no olho
de Maria. Dona Auda prontamente já puxa um lenço, e com uma das pontas o vai
retirando dos olhos da menina. Em seguida pinga leite.