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domingo, 21 de abril de 2013


O ASSALTANTE DE ÓCULOS
 
 
            Quando o último paciente saiu fechando a porta, o médico olhou ao redor, por todos os lados, procurando os seus óculos. Cadê?
            À noite seria a vez dos professores de Filosofia e de História terem seus óculos desaparecidos, no mesmo bairro, além da reclamação de vários estudantes, junto à direção da escola.
            Dali a duas semanas as notícias das rádios e jornais locais enfatizavam o mesmo conteúdo: estranhamento de profissionais de áreas variadas em relação ao sumiço não de um de seus óculos, mas de todos.    Um bibliotecário confessa já ter comprado três em substituição aos que julgava ter perdido. Uma escrevente judiciária estupefata diante do furto do seu em pleno expediente. Seria coincidência? O que estaria acontecendo? 
            Numa casa de esquina, um canto harmonioso sobressaía-se: um pedreiro cantarolava o dia todo enquanto suas mãos calejadas agitavam-se com as ferramentas e materiais em construção. O eco de sua cantoria ouvia-se na rua, à distância. A casa estava semipronta e vazia de móveis, o espaço era preenchido pelo cantar suave, às vezes mais acentuado. Um casal de velhos vinha passando devagar, de mãos dadas, pareciam tranquilos. Ela com amnésia após cair no banheiro da faculdade batendo a cabeça branca no vaso sanitário. Estava bem elegante, com cabelo em coque, saia com estampa branca e preta, blusa preta, sapatos pretos e baixos, com meias de estampas brancas e pretas. Ele, vestindo calça jeans azul, camiseta verde, sapato preto, calvo. Ambos demonstravam olhar meigo e voz suave ao cumprimentarem o pedreiro que saíra à porta no momento em que passavam. O casal adorava construções. Pediram licença e entraram para ver.
– O senhor é um artista. Quanta coisa que do nada transformou! Disse o senhor.
– Obrigado, falou sorrindo meio apertado, com receio de mostrar os vácuos dos dentes.
– E que bela canção o senhor cantava, balbuciou a senhora, meu avô também era assim.
            – Era pedreiro?
            – Não. Cantor e sapateiro, respondeu ela.
            – Quando o senhor se muda pra cá? – indagou o homem idoso, rindo e olhando junto à mulher as paredes e chão inacabados, como se visitassem a um santuário.
            – Não é minha, não, senhor!  O bacana lá da cidade vem com a família logo, logo. Eu ainda não tenho a minha casa, o salário é muito baixo e tenho família – disse apertando as mãos do casal e entrando.
De fato, Américo passava por dificuldades e o filho adolescente morava com ele. O filho, viciado em crack há algum tempo, deixava o pai desesperado. Tentara quase de tudo para recuperá-lo, só lhe sobrava agora a internação e continuar frequentando o grupo de Narcóticos Anônimos, o Amor Exigente. De repente passa a mão na testa e... cadê seus óculos?
“Ah, não! Mais essa, minha nossa! De onde vou tirar dinheiro pra arranjar outro?! Bem, dá-se um jeito! E que casal simpático! Valeu o dia!” Ele soube, depois, que a costureira do bairro também perdera os seus, por várias vezes, e agora portava uma lente de contato.  
            Américo animou-se ao ver o filho diante do computador, distraindo-se. Observou dois bonequinhos na tela, o filho gritava, gesticulando:
            – É isso aí, soca ele. Cai Mané!!
            – O que é isso, filho?
            – Nada, pai. É só eu socando um idiota da minha classe.
            Américo, que não entendia nada de computador e internet, achou que o filho estivesse delirando, como lhe ocorria ultimamente, mas estranhou que ele se interessasse pelo aparelho, pois estava encostado desde que o comprara na promoção. Tudo entediava o garoto.
– E agora ainda vou ter que gastar com os óculos, ou lentes de contato, senão martelo meu dedo, que nem ontem! – Sozinho, refletia.
Lembrou-se do último delírio do filho, “pai, os dentes de alho mostravam os dentinhos semicerrados e cheios de cárie para mim, pareciam monstrinhos que me satirizavam e vinham em minha direção, todos juntos numa única cabeça de alho. Foi horrível!” Às vezes, os pesadelos não o deixavam dormir. “Pobre filho!”, pensava nos delírios do jovem, sentado na cadeira de madeira que ele mesmo fizera com a ajuda do garoto. “E aquele sonho da Guerra dos Cem anos!” Acordou assustado sem saber de que lado lutava, o inimigo tinha cortado a sua cabeça e a violência era terrível contra todos. Disse que “ainda tentou ajudar algumas mulheres e crianças a se esconderem”.
            De manhã, após relembrar os delírios do filho, Américo foi trabalhar e notou grande movimentação de pessoas na rua, todas sem óculos e revoltadas. Diziam que a mania tinha se espalhado pela cidade. Até uma mulher tentou roubar um beijo e foi esbofeteada.  Américo gelou. “Seria o seu filho, o ladrão? Teria feito isso para conseguir dinheiro? Não pode ser! Talvez seja algum psico... psicopata; teria raiva de óculos? O pai do ladrão seria um torturador, sempre com óculos? Ganharia dinheiro com isso? Seria algum desempregado há longo tempo? Sofrera abuso na infância, ou como dizem por aí, bule... bullying...” – Américo conjeturava.
            Manchetes do dia seguinte: Pegaram o ladrão doido, que de doido nada tinha. Morava com os pais. Tinha uma vida aparentemente normal. Era apenas o vendedor contratado de uma empresa de lentes de contato entrando na concorrência de mercado, agora com mais ênfase.