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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O ASSALTANTE DE ÓCULOS



            Quando o último paciente saiu e fechou a porta, o médico olhou ao redor, por todos os lados, procurando os seus óculos. Cadê?
            À noite, seria a vez dos professores de Filosofia e de História terem seus óculos desaparecidos, no mesmo bairro, além da reclamação de vários estudantes, junto à direção da escola.
            Dali a duas semanas, as notícias das rádios e jornais locais enfatizavam o mesmo conteúdo: estranhamento de profissionais de várias áreas em relação ao sumiço não de um de seus óculos, mas de todos adquiridos.             Um bibliotecário confessa ter comprado três em substituição aos que julgava ter perdido; uma escrevente judiciária estupefata diante do furto do seu, em pleno expediente. Seria coincidência? O que estaria acontecendo? 
            Numa casa de esquina, um canto harmonioso sobressaía-se. Um pedreiro cantarolava o dia todo enquanto suas mãos calejadas agitavam-se com as ferramentas e materiais em construção. O eco de sua cantoria ouvia-se na rua, à distância, a casa estava semipronta, mas vazia de móveis, o espaço era preenchido pelo cantar suave, às vezes mais acentuado. Um casal de velhos vinha passando de mãos dadas, devagar, pareciam tranquilos. Ela com amnésia após cair no banheiro da faculdade batendo a cabeça branca no vaso sanitário. Estava bem elegante, com cabelo em coque, saia com estampa branca e preta, blusa preta, sapatos pretos, baixos com meias de estampas brancas e pretas. Ele, vestindo calça jeans azul, camiseta verde, sapato preto e era calvo. Ambos demonstravam sorriso doce, olhar meigo e voz suave ao cumprimentarem o pedreiro que saíra na porta no momento em que passavam. O casal adorava construções. Pediram licença e entraram para ver.
- O senhor é um artista. Quanta coisa que, do nada transformou.
- Obrigado, disse sorrindo meio apertado, com receio de mostrar os vácuos dos dentes.
- E que bela canção o senhor cantava. Meu avô também era assim.
            - Era pedreiro?
            - Não. Sapateiro. Quando o senhor se muda pra cá? – indagou o homem, olhando junto à mulher, as paredes e chão inacabados, como se visitassem a um santuário.
            - Não é minha, não senhor!  O bacana lá da cidade vem com a família logo, logo. Eu ainda não tenho a minha casa, o salário é muito baixo e tenho família - disse apertando as mãos do casal e entrando.
De fato, Américo passava por dificuldades e o filho adolescente morava com ele. O filho, viciado em crack há algum tempo, deixava o pai desesperado. Tentara quase de tudo para recuperá-lo, só lhe sobrava agora a internação e continuar frequentando o Alanon. De repente passa a mão na testa e cadê seus óculos?
- Ah, não! Mais essa, minha nossa! De onde vou tirar dinheiro pra arranjar outro?! – Soube, no mesmo dia, que a costureira do bairro perdera os seus, por várias vezes, e, agora portava uma lente de contato.  
            Américo animou-se ao ver o filho diante do computador, distraindo-se, pensou ele. Observou dois bonequinhos na tela, e o filho gritava, gesticulando:
            - É isso aí, soca ele, cai Mané.
            - O que é isso, filho?
            - Nada pai, é só eu socando um idiota da minha classe.
            Américo, que não entendia nada de computador e internet, achou que o filho estivesse delirando, como lhe ocorria ultimamente, mas estranhou que ele se interessasse pelo aparelho, que estava encostado desde que o comprara na promoção e em muitas parcelas. Tudo entediava o garoto.
- E agora ainda vou ter que gastar com os óculos, ou lentes de contato, senão martelo meu dedo, que nem ontem! – Sozinho, refletia.
Lembrou-se do último delírio do filho, “pai, os dentes de alho mostravam os dentinhos semicerrados, cheios de cárie, para mim, pareciam monstrinhos que me satirizavam e vinha em minha direção, todos juntos numa única cabeça de alho. Foi horrível!!”  Às vezes, eram os pesadelos que não o deixavam dormir. “Pobre filho!”, pensava nos delírios do jovem, sentado na cadeira de madeira que ele mesmo fizera, com a ajuda do garoto. “E aquele sonho da Guerra dos Cem anos!” Acordou assustado sem saber de que lado lutava, o inimigo tinha cortado a sua cabeça e a violência era terrível contra todos. – Disse que, “ainda tentou ajudar algumas mulheres e crianças a se esconderem”.
            De manhã, após relembrar os delírios do filho, Américo foi trabalhar e viu grande movimentação de pessoas na rua, todas sem óculos e revoltadas. Diziam que a mania tinha se espalhado pela cidade. Até uma mulher tentou roubar um beijo e foi esbofeteada.  Américo gelou. “Seria o seu filho, o ladrão? Teria feito isso para conseguir dinheiro? Não pode ser! Talvez seja algum psico..., psicopata; teria raiva de óculos? O pai do ladrão seria um torturador, sempre com óculos? Ganharia dinheiro com isso? Seria algum desempregado há longo tempo? Sofrera abuso na infância, ou como dizem por aí, bule...bulliyng...” – Américo conjeturava.
            Manchetes do dia seguinte: Pegaram o ladrão doido, que de doido não tinha nada. Morava com os pais. Tinha uma vida aparentemente normal. Era apenas o vendedor contratado de uma empresa de lentes de contato, entrando no mercado concorrente, agora com mais ênfase.
             





3 comentários:

  1. Oi, Luzia! Seu post de uma literatura ímpar, deixou-me intrigada... Ótimo contexto. Segurou a ansiedade pelo desfecho que não esperava ser esse! Dedução: o que faz o "marqueteiro" de segunda classe para colocar seu produto no mercado! E, pobre de nós que incautos deixamo-nos contagiar! Abraço da Célia.

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  2. Oi Lú, gostei do seu texto, meu Bem; mas onde foi que pôs os meus óculos e sem eles não consigo os achar. Não posso trabalhar de lupa....
    Camilo

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  3. rsrsrs Boa ideia, Luzia! Gostei do texto. Beijos!

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