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quinta-feira, 31 de março de 2011

(Reflexão sobre a peça Lugar onde o peixe para, apresentada pelo Grupo de Teatro Andaime, Unimep, Piracicaba)

A peça por Dora e Deleise  (Publicada em 18/07/08) )

            O mundo de Dora e Deleise, irmãs do Denirso, filhos de Nerso e Romirda, morando na zona ribeirinha de Piracicaba, se situa bem perto de nós, nas nossas reminiscências da infância. Ingênuas num mundo de assombrações e medos, vendo o sofrimento e a sisudez dos adultos, que ora as ameaça com a “Inhala seca” e com o “turco que come criança”, uma acolhe a outra naturalmente. Deleise, a menor, disputa com Dora pela posse da boneca de sabugo de milho, por ter perdido a sua e tem de se submeter à regra “que se perdeu fica sem”, o que Dora já conhece. Brigam e brincam nesse mundo de pais severos, autoritários e rudes e do trabalho familiar; mas Dora defende a irmã quando outra menina lhe bate, fazendo a vez de irmã mais velha e protegendo a menor. Estão se socializando nas brincadeiras, precisam de mais gente para brincar de roda e de passa-passa bom barqueiro, mas brigam. Vez por outra levam puxadas de orelha e tapas na bunda, por corretivos da mãe. As relações sociais ainda são difíceis e causam conflitos.
           Ainda que Dora cuide da Deleise, esta não “pode” ser mãe no lugar dela e não vai deixar, a boneca é dela, a irmãzinha é só tia. Que ache a sua boneca que perdeu, se vire e deixe de ser desleixada. Dora ainda se mantém egocêntrica naquele pequeno mundo, corrige Deleise como a Romirda e a defende sem perder seu espaço familiar, a de irmã mais velha, e vão crescendo mutuamente.
            Enquanto trabalham, ralando milho brigam, brincam e conversam com a mãe. Deleise ainda não sabe ralar, passa o ralo no milho e não o contrário. Dora a corrige, mas é ingênua também. Não percebe a seriedade da ausência do irmão Denirso, morto pelo rio, enquanto entretém com a sua boneca em seu colo, dando papinha com a sua colher. Seu mundo de faz-de-conta espelha seu sonho, vai ser mãe ou pode ser mãe como a Romirda.
            Na procissão e oração na sua casa, as meninas ajoelham-se na frente do altar rústico, mas a mais nova aconchega no colo da mais velha e dormem uma por sobre a outra, alheias àquele povo todo ali. O que aconteceu? Não aguentam ficar acordadas e as vizinhas levam-nas para dormir no quarto. Levantam sonolentas. Até Dora vai cambaleando. Ainda não podem acordar para este mundo dos adultos, além da boneca de sabugo de milho, não podem suportar a imensa dor de Romirda e Nerso. Por certo vão perguntar pelo Denirso nos dias seguintes. O mundo não pode ser tão ruim! “O hóme morreu, manhê?”, pergunta Deleise numa das histórias da mãe, enquanto rala o milho. Para a sua consciência infantil a morte ainda é um tabu. Depois de todas as estórias, contadas e cantadas, o mundo mudou, apesar do rio dar margem ao novo mundo e ao recomeço do mito daquelas cinderelas caboclas (nascer, crescer, casar e ter filhos) e como diz o Nerso “até Deleise já casô”.
            Os adultos, para proteger as crianças de cair no rio ou acidentes no mato, contam histórias despertando seus medos primitivos como a da Inhala Seca, a do turco-que-come criança e de outras. O medo é algo real para ambas e o dividem com cumplicidade em seu mundo ingênuo. Os adultos em seus medos crescidos, protegem-se com orações das doenças, do mau olhado, de quebranto, da falta de peixe, da colheita ruim, com rituais como a procissão para o divino, a vassoura detrás da porta ou como o garfo na vassoura; e voltam a ser crianças na beira do rio, a conversar, a brincar, a inventar um mundo para si e para os outros. Enquanto o peixe não vem na ponta do anzol, pescam os retalhos de suas vidas borbulhantes no inconsciente, longe do falar rebuscado da palavra escrita, as palavras e histórias saem ao acaso e num causo e se entende pelos gestos e piscar “do zóio”. Vêm as superstições, a solidariedade, os acontecidos com a vizinhança e as discussões de caipira, que ameaça, mas não corta os laços com o compadre. Amizade de pescador é coisa séria.
Nhá Dita, que brigou com Romirda, é quem a ampara na dor pela perda do filho primogênito e quando diz ao Nerso “o que vai sê de nói!”, ele a entrega a Nhá Dita, que a consola e a tira de cena. A morte rompeu um padrão, quebrou a resistência e o segredo da pamonha amarelinha. Romirda contaria a nhá Dita o segredo agora ou mandaria a vizinha pôr uma fitinha vermelha no cabo da panela?! Ficaram mais solidários e cooperativos. (Quem vai vender as pamonhas?). O amor de mãe ainda está ligado ao filho que a ampararia. O homem é o provedor do lar. As meninas são companheiras, mas se casarão e vivem em seu mundo, como se dizia: criança não sabe nada. Não sabe ou não devem saber?! Entre esses padrões preconcebidos, Dora, já quase-mulherzinha se relaciona com a irmã “bobinha”. É mais esperta e tem “responsabilidade” por Deleise, a quer ensinar: “eu falei prela manhê”. Deleise não compete com Dora, é sensível e está na idade da razão. Denirso, cheio de fogo e de rebeldia, é agora apenas uma vela que se apaga nas mãos do pai e ninguém mais esquece, vira lenda e peça de teatro.  
(Agradecimentos em particular a minha eterna “Dora”, que me ajudou na correção)        
                                           Camilo Irineu Quartarollo – Escritor e escrevente!

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