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terça-feira, 24 de agosto de 2010

Confusões da avó Maria (Trata-se de um capítulo do Livro A Menina do Bairro Fria)

CONFUSÕESDAAVÓMARIA


-H i, a vaca foi pro brejo! Onde está a vó Maria!!!?? Era a 3ª vez que a avó materna, com esclerose precoce, fugia da casa De Dona Auda e era a vez de Regina espantar-se com a gravidade da situação. Dona Auda morava ainda na Rua Samuel Neves, onde abrigou a confecção por alguns meses.
-Ela estava aqui agorinha mesmo, meu Deus. Onde ela teria ido, e a essas horas?- Enxugando as lágrimas que frequentemente escalavam sua face, apesar de já ter realizado a cirurgia no canal da lágrima, Dona Auda desligou a máquina de costura, ajeitou o tecido sobre a mesma e levantou-se com a agilidade habitual. –Temos de ir atrás dela. Sua cabeça não anda boa, e ela não saberá retornar para casa, completou.
-Eu vou com a senhora, mãe. Ela não deve estar longe, se bem que, a perna dela está com muita saúde, né!?! Regina e a mãe subiram a escada que dava acesso aos quartos, a mãe trocou rapidamente sua saia marrom, de viscose amassada, por uma verde, de algodão. Desceram a rampa externa e Regina foi fechando a porta da sala. Regina filha apressou-se. Dona Auda já estava quase chegando à esquina e parecia um cisco ao vento, de tão lépida.
-Da última vez ela foi parar lá no Lar dos Velhinhos, lembra? Gritou Ana, aumentando os passos para alcançar a mãe.
-Se lembro...Foi preciso o policial ajudar a procurá-la. Até hoje não entendo como ela conseguiu chegar lá, e a pé. Foi Deus quem iluminou seus passos, porque a cabeça dela não ajuda mais, não.
-Olhe ali, mãe!? Por acaso não é daquela cabeça branca que estamos falando? Regina riu aliviada ao vislumbrar a avó virando o segundo quarteirão, como uma garça.
-Graças a Deus! Com tanta coisa pra costurar e ela ainda inventa de dar no pé. O que é que tem na cabeça, minha Nossa Senhora? Não tá bom aqui? Só reclama de tudo e de todos.
-Calma mãe. Esclerose é assim mesmo. O que se vai fazer, né?!! Enquanto ela ficar aqui temos que cuidar, mas logo ela vai para a casa da tia Neuza. É a vez dela, não?- Alcançaram –na e tiveram que levá-la contrariada, pois resistia, gritando:
-Larguem eu, quem são oceis? O que oceis vão fazer comigo? Us menina?! –Era assim que ela se referia às netas quando lhes dava uma bronca. - Benedito! Ô Benedito!? Vem ajudar eu... socorro!!
-Calma Vó. Sou eu, a Regina, sua neta, não tá lembrada? Olhe pra ela, é a sua filha Auda. -Regina persistia em relembrar à avó aquilo que a sua frágil memória não permitia mais lembrar-se. Regina e Auda sabiam disso, mas não custava nada, ou melhor, era-lhes penoso tentar clarear novamente suas lembranças. De fato, as reminiscências de Dona Maria estavam cada vez mais voltadas a um passado remoto. Chamava pelos filhos como se crianças ainda o fossem, e o marido falecido, o Benedito, era requisitado com maior frequência. Ele falecera em 22 de agosto de 1977, com 68 anos completados no dia 03 de julho. Ela perdera totalmente a noção do tempo e do espaço. Chorava e lamentava-se pela demora das suas crianças de voltarem da roça.
–Já é noite, onde eles tão? Eu preciso ir embora pra minha casa, os fio tão chamano, escuite! Tá ouvino o choro deles? Já vô, já to ino, meninos. -E alvoroçava-se, com uma agitação fora do controle. Normalmente ela deparava-se com a porta fechada e aí xingava, esmurrava, gritava. Por várias vezes, os transeuntes paravam na calçada para perguntar o que estava acontecendo com a velhinha prisioneira, na janela.
Outras vezes estranhava os próprios filhos e filhas.
-Quem é ocê? Saia já da minha casa.
-Sou eu, mãe, a sua filha Cleymarí. –Era a sua bela e elegante filha caçula.
-E aquele moço ali? Boa tarde, Pedro, é você mesmo? Entre! Sente...Como vai a mãe?- Apertava a mão do entregador de gás, desconhecido seu. Ignorava a filha.
Não distinguia mais nada. Até a comida passou a ser obstáculo, não se saciava mais, quanto comia, quanto sentia fome, concomitantemente. Era desesperador para a família acompanhar dia-a-dia a senhora definhar-se. Ela ia até a janela que dava para a rua, alardeando aos quatro cantos:
-Tô cum fome!!! Alguém acode eu! Eles não me dão cumida!!!! Moço! Pelo amor de Deus! Me dá um pão. –Chamou acenando ao jovem que passava. Ás vezes perdia o pouco da vergonha que lhe sobrara, e pedia para tirá-la daquela casa. Se não fosse uma triste cena, seria cômico para os pedestres observarem aquela velhinha de cabeça branca com ralos fios, macios e sedosos esvoaçando com o vento pelas grades da janela, clamando por socorro. Uma donzela envelhecida prisioneira nas mãos de cruéis torturadores, ou melhor, de uma quadrilha composta por membros da mesma família. “Como podem fazer isso comigo?” Pensava a mulher à espera do príncipe cavaleiro, que heroicamente a libertaria do subjugo.
-Mas mãe, a senhora acabou de almoçar e eu acabei de lhe dar duas bananas que também já engoliu, como pode estar com fome de novo?- Falou Dona Auda, fechando a janela, impacientando-se. –E tá na hora do banho, hoje a senhora não escapa. -Dona Maria relutava em banhar-se, o que causava repetitivos transtornos àqueles que cuidavam dela.
-Mentira! Sua mentirosa! ocê não me deu nada! Ó aqui ó, que eu comi hoje, só se for essa banana, viu?! -Fazia um gesto dobrando o cotovelo em sinal de “banana procê”. Sua mentirosa, vocês são tudo pão duro, Deus vai castigar ocê, sua lazarenta! Desgranhenta! –Dona Auda a puxava. Ao passar pela sala, Dona Maria empacou e sentou-se no sofá.
-Não adianta, mãe, ela não entende mais nada. Nem o seu próprio estômago ela controla mais, disse Luzia sentando-se ao lado da avó e pondo as pequenas mechas de cabelo, caídas atrás das orelhas da anciã. Foi uma das poucas vezes que conseguiu tocá-la espontaneamente, e por permissão daquela. Pobre senhora. A neta se identificava com as dores da avó, mas também se sensibilizava com o desespero e o desgaste emocional de Dona Auda e de todos os familiares. Estavam sem o chão sagrado que sempre os fortalecera e os encorajara a enfrentar os problemas, mas esse aí, como resolvê-lo? Não estavam preparados para lidarem com a doença da matriarca. Luzia sabia que a personalidade da mãe impedia que demonstrasse o tamanho de seu sofrimento, este estava camuflado nos choros contidos e escondidos, mas as olheiras e a seriedade do olhar denunciavam seu desamparo em relação ao comportamento de sua mãe, cada vez mais distante do tempo presente. A jovem sentia necessidade de consolar a mãe e reanimá-la.
- Talvez seu inconsciente rememore a época em que ela e as crianças passavam necessidade, coitada da vó. Ontem foi a mesma coisa, dei-lhe comida o dia todo e o dia todo ela reclamou de fome, e vinha atrás de mim, pedindo e exigindo comida.- Disse Luzia pensativa.
-Que Deus me perdoe, mas às vezes tenho a impressão de que ela faz essas coisas por manha, acho que é até mesmo pra prejudicar a gente. Eu nem sei mais o que pensar.
-Se acalme mãe, não acredito que ela faça por mal, é que ela está doente, sente-se só e a cabeça não ajuda. É digna de pena, é o que eu acho.
-Ah não sei, viu! Como é que tem horas, quando ela quer, que fala coisa com coisa e se lembra de quase tudo?!
-É assim mesmo. A memória vai e vem. Já li sobre isso. É tipo flashes de lembranças, que se acendem e depois se apagam. Deve ser terrível para ela ficar acreditando que ainda é uma mocinha neste corpo envelhecido ou, que é uma mãe com seus filhinhos largados por aí. E só o fato dela depender dos outros, dela não ter autonomia para cuidar de sua casa, já deve ser bem constrangedor. Vai chegar uma hora em que estará mergulhada num breu total, e aí sim, não sei o que será dela e dos que cuidam dela. Luzia percebeu nas mãos ansiosas de sua mãe a profundidade de sua angústia, e completou: as tias e os tios não vão fazer um revezamento para olhar a vó? Então, mãe, fique tranquila, que daqui a uma semana é a vez da tia Izolina ficar com ela. Assim vamos tendo tempo para repor as energias.
-E, e olha que precisa de muita. Agora, eu quero ver se todos os filhos vão ajudar. Já tem alguns querendo tirar o corpo fora e você já sabe pra quem vai sobrar...
Entre tantas confusões de Dona Maria, algumas marcaram, por serem hilariantes, uma criatividade fantástica.
Certa ocasião, no início da doença que a acometia, estavam suas filhas reunidas na casa de Dona Auda, junto com a mãe, quando zapt! Adentrou a cozinha uma barata voadora e das grandes. Horror!! No corre-corre e na gritaria, algumas entram embaixo da mesa, outras fogem para os quartos e trancam-se, outras ainda, tentam deter Dona Maria que acabara de agarrar a barata gigante com a mão esquerda e corria atrás de todos, rindo como uma criança sapeca. De repente parou, olhou para os olhos assustados das filhas e das netas... matou a barata, esmagada na palma de sua mão.
Em outro momento, quando Luzia estava de dieta da filha, e todos estavam ausentes naquela tarde, a avó encanou com um grande espelho que havia na sala de costura de Dona Auda, para a experimentação de roupas pelos clientes.
– Abra esta porta fia, preciso ver o meu marido e as criança que tão chorano por mim, dizia isto e tentava tirar o espelho do lugar, acreditando fielmente que tratava-se de uma porta. Não via a própria imagem refletida nela.
– Mas vó, não tem nenhuma passagem secreta aí, é só um espelho, Luzia tinha que despistá-la. O espelho era pesado e ela não podia esforçar-se muito, mesmo assim arrastou-o várias vezes na esperança de que a avó descobrisse a ausência de portas atrás do espelho, Em vão. A avó continuava seguindo o espelho e exigindo que lhe desse passagem.
–Saia daí, ocê e os outros tão sempre quereno enganar eu, pensa que não sei? Luzia ouviu o início de choro da filha, no quarto ao lado, e a clemência da avó-donzela para escapar da prisão. Mas ali, naquele momento, não havia príncipes nem heróis para ajudá-las. Salvem-se quem puder! Luzia fez o que pôde: foi cortês com a mãe de sua mãe até onde fora possível, porém, pressionada pela força física e pela força mental daquela, decidiu reagir com maior rigor, usando a criatividade.
–Chega pra lá, a porta que a senhora quer sair está trancada e eu não tenho as chaves. Veja!- Mostrou o espelho para a vó e fez gestos com a mão- Não dá pra abrir assim, nem assim. Nossa! Estamos presas aqui. –A senhora a fitou surpresa, com seus espertos olhinhos escuros. Parecia assustada. Luzia continuou, não podia blefar. – Tem outra saída daquela lado de lá.Vamos, eu também vou fugir com a senhora. Espere, vou pegar algumas roupas. Luzia queria ganhar tempo, sabia que a mãe estava por retornar da lojinha de aviamentos, próxima dali, onde fora comprar botões, elástico, colchetes e linhas. -Escute! Aqui tem uma criança que está chorando!! É a minha filha. Vou pegá-la primeiro, coitadinho do bebê! -Encaminharam-se para o quarto da menina e aí a avó esqueceu-se do estratagema de fuga e voltou sua atenção a querer carregar no colo, a criança. Novas artimanhas da neta para escapulir da perseguição da avó para com a bisneta. Infelizmente não podia confiar nas intenções e da avó – criança. Chega Dona Auda! Alívio!
Estando à nova casa de Dona Auda, no Jardim Colonial, a vó Maria vive uma situação cinematográfica. Vamos à história.
A casa em que residiam ainda não era murada, e, do outro lado da pequena e sossegada rua, moravam Dona Rosária e o seu esposo. Contava com quarenta anos, simpática, amorosa, boa vizinha, tinha o hábito de colocar as roupas lavadas para secarem nos varais da garagem. Nesta manhã efetuava seu serviço cotidiano e cantarolava uma animada música. Não percebeu a aproximação de Dona Maria, que saíra de sua casa temporária, sem ser notada. Parou do lado de fora, rente ao portãozinho verde, da vizinha. Olhou-a com curiosidade e algumas incertezas, as costas levemente envergadas, o ventre contraído em sua solidão e temores, as pernas retesadas, a respiração intranquila. Apoiou os rijos dedos sobre o portão de ferro, as palmas das mãos acompanharam a força impetuosa advinda dos pulsos e dos braços. Apertou com mais intensidade os olhos, cujos cílios quase se encontrariam. Ergueu a mão esquerda, buscou a coragem de sua voz, grave, tocou no ombro de Dona Rosaria como uma coruja, sem ser notada, e, indiferente ao susto disfarçado da mulher, disse num fio:
-Dona muié, Dona muié??!
-O que foi Dona Maria? O que aconteceu?
-Eu to cum medo!!
-Medo de quê, Dona Maria??
-E tô cum medo do cê!!!!
Poliana disse uma vez a Dona Auda, que gritara com sua mãe: “você não está sendo nada legal com a vó Maria!” E dessa época em diante a doença do esquecimento só foi piorando. Revezando de casa em casa de algumas das filhas, Dona Maria acabaria definhando, acamada durante meses, extremamente magra. Seu organismo e sua cabeça enjeitavam comida e mesmo líquido. Sua bela pele, antes bem morena, agora se mostrava sem cor, quase desbotada, e com um fiozinho de vida que ainda sustinha a alma ao corpo. Faleceu aos 77 anos, em 1991, bem distinta daquela mulher forte, que pariu 10 filhos, e dos oito ainda vivos já se esquecera.

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